Como dizem, “é bom deitar sobre o problema e analisa-lo friamente no outro dia”, sem o calor do momento, deixando as emoções de lado.
Penso que a mobilização dos caminhoneiros autônomos, ocorrida entre os dias 21 e 31 de maio de 2018, em todo o Brasil, seja uma destas.
Teço, aqui, algumas análises sobre este evento, expondo o que, em minha opinião, pode ter originado este movimento e, já digo de início, para mim, a culpa não é (só) do preço do diesel. A questão é muito mais complexa do que se supõe.
Ela envolve, em primeiro plano, a Lei de Mercado (oferta e demanda), uma inflação mascarada, e a baixa escolaridade dos profissionais autônomos de transporte de carga, bem como alguns outros fatores de menor importância, mas que não podem ser relegados.
Ao final, são traçadas algumas sugestões de melhoria, com relação às diversas análises realizadas, para que possam ser adotadas em algum momento (ou melhor, o quanto antes).
Lei da oferta e demanda
A principal causa da queda de rendimento do trabalho dos profissionais autônomos de transporte – a Lei de Mercado, também conhecida como Lei da Oferta e Demanda. A partir do início dos anos 2000, muitas facilidades e incentivos à aquisição de caminhões foram concedidas pelo Governo Federal, o que aumentou – muito – a oferta de prestadores de serviço de transporte de carga em todo o território nacional.
Foi uma das raras vezes em que foi possível perceber, um exemplo prático da Força do Cliente, pertencente às Cinco Forças de Porter. Por haver muitos fornecedores do serviço, o cliente pode optar – dada a falta de diferenciação entre as ofertas – pelo mais barato, exigindo (e oferecendo) a cada negociação, um honorário menor pelo serviço contratado. O excesso de fornecedores do serviço está ocasionando um “leilão invertido”, em que vence quem cobra menos.
Nos Estados Unidos, onde o número de caminhoneiros vem caindo (conforme texto da Gazeta do Povo), o valor do frete, por este modal, tem subido, apesar de toda a receita que os profissionais lá ganham por ano (US$300.000 anuais, perto de US$25.000 mensais – quase R$ 100.000 mensais).
O risco desse comportamento é que, para cobrir o que falta (financeiramente falando), o caminhoneiro passa a trabalhar mais do que o permitido por lei – e humanamente possível – e passa a realizar jornadas de trabalho longas, em alguns casos, com o uso de drogas, arrebites e outros subterfúgios ilícitos para aumentar seu desempenho.
Inflação Mascarada
A segunda grande causa da queda de rendimento dos caminhoneiros. Apesar de os indicadores oficiais mascararem a realidade, a inflação está de volta, reduzindo o poder de compra de todos – caminhoneiros ou não –, devido a uma política populista de retenção (ou represamento) de preços realizada em anos passados, em uma estratégia eleitoreira que agora mostra o amargo resultado: moeda desvalorizada, preços altos, empresas públicas quebradas.
Era previsível que isso, um dia, ocorreria no Brasil, infelizmente.
Noções de gestão (principalmente, financeira)
Em terceiro, numa escada de grandeza, destaca-se que, generalizando, os caminhoneiros não sabem qual o preço mínimo aplicar no seu frete para viver com o mínimo de dignidade. Não é difícil pensar que, como em muitos casos, seja um “fator de multiplicação”, que envolva o preço do combustível e a distância a ser percorrida.
Há muito mais envolvido neste cálculo. Rapidamente, podem ser citadas as seguintes variáveis: financiamento do veículo e do reboque, seguros, IPVA, alimentação, pedágios, dias parados para descarga, se há ou não frete garantido na volta, pró-labore, desgaste dos pneus, manutenção preventiva, média horária, consumo médio, e horas trabalhadas no dia.
E a lista não acaba aqui.
Um caminhão é um negócio e o gestor é o condutor, o caminhoneiro. Uma verdadeira empresa sobre rodas. É preciso saber gerenciar esse negócio, para que ele prospere e gere lucros.
E não somente gestão financeira, mas também marketing pessoal, gestão de conflitos, gestão comercial… Tudo o que se aplica em uma empresa de tijolos, é aplicável na empresa sobre rodas.
Representatividade sem autoridade
Iniciando a exploração das questões menos relevantes, esta mobilização dos caminhoneiros mostrou que a Associação Brasileira dos Caminhoneiros (ABCAM), apesar de representa-los junto aos detentores do poder nacional (presidente, ministros, senadores e deputados) durante as negociações, não possui poder ou autoridade sobre seus representados. O poder é legitimado na proporção em que as determinações (ou ordens) dos detentores do poder (no caso a ABCAM) são aceitos e praticados por seus liderados e, a resposta dos caminhoneiros à sua entidade representativa foi de descaso.
Uma das causas desta falta de poder pode ser que ela não teve nenhuma influência no início das paralisações, sendo este um ato originado na rede de caminhoneiros. O comportamento de rede pode ter um nó inicial, porém a liderança é dispersa por seus integrantes.
No momento em que as principais demandas do movimento, negociadas entre ABCAM e representantes do governo foi concluída, com “vitória” dos caminhoneiros, ocorrida no domingo (27), não houve a aceitação ou consenso sobre a aceitação da finalização da mobilização, que só veio a ser concretizada no dia 31.
Esse é um problema que assola diversas associações representativas Brasil afora, por não ter mais (ou nunca ter tido) poder junto aos seus representados, seja por omissão, por inércia ou por descaso.
O poder (ruim) das redes sociais
É possível realizar um verdadeiro tratado sobre os malefícios que as redes sociais (em número igual ou maior aos de benefícios) podem causar. Um deles é a inconsistência das informações passadas, dado o “anonimato” da origem.
É muito importante, nestes casos, checar as fontes da informação, moderar e ter um olhar crítico sobre o que se posta e compartilha. Velhos boatos voltam à cena, imagens e filmagens antigas retornam como novidades.
É nestes momentos que as redes sociais mostram o seu pior lado.
Trabalho autônomo
Já fui trabalhador autônomo, como muitos outros amigos já foram e o são.
Nesta opção de vida, o rendimento fácil é ilusão.
Tudo é conquistado com muito esforço e dedicação, é preciso muito trabalho e muito suor para manter a renda estável e as contas em dia.
Muitas pessoas optam pela “carreira solo” por entender que não terão mais chefes, patrões ou gestores, mas esquecem-se que, neste momento, todos os clientes viram seus superiores diretos, exercendo poder sobre o seu negócio.
Corrupção e governo
O descontentamento com a forma com que a administração política nacional vem ocorrendo é visível. O nível de descontentamento com o governo é alto, a representatividade do atual modelo político é baixa. O povo não se sente mais representado pelos seus eleitos. Houve um descolamento tal entre representantes e representados que será difícil transpor e reestabelecer a conexão.
Apesar de ser combustível para a fagulha que iniciou o processo e possuir grande responsabilidade sobre tudo o que está acontecendo no país, neste caso, o governo possui papel marginal.
Estadodependência e Transmissão da culpa
Esta mobilização deixou clara a Estadodependência que existe no brasileiro e na não observação de que o real culpado pelas suas próprias mazelas são os caminhos por nós escolhidos para trilhar. Ninguém é nada sem escolher ser o que é. A vida não leva ninguém a lugar nenhum. Nós optamos por ser bandido, caminhoneiro, professor, consultor. Podemos até querer ser presidente da república, é uma opção, mas para isso, precisamos nos preparar. É uma escolha que fazemos.
Desta forma, precisamos aprender a assumir a responsabilidade pelos nossos atos e não ficar aguardando que a resposta virá do Governo ou, quem sabe, de Deus. Nós, brasileiros, esperamos que o Governo faça tudo e o Governo diz que “Se Deus quiser, alcançaremos as metas”. Quer dizer, um coloca nas mãos dos outros o que deveria estar fazendo, ou seja, melhorar suas escolhas.
Com relação à transmissão da culpa, o que dizer da atuação do Governo? Quais foram os movimentos realizados por ele para reduzir o valor do combustível? Desinvestimento em saúde, segurança, educação e transporte. E, dessa forma, sobre quem recairá a culpa pela falta destes investimentos? Sobre os caminhoneiros e o desconto no diesel. Uma manobra para encontrar, no próprio manifestante (caminhoneiro) o bode expiatório para as futuras mazelas brasileiras.
Sugestões
Diversas são as que podem ser geradas a partir desta análise aos profissionais caminhoneiros brasileiros, mas penso que três são as mais importantes.
A primeira – e penso ser a mais importante – é que comecem a analisar o seu caminhão como um negócio, uma pequena empresa e, para isso, são necessários conhecimentos mínimos de administração financeira e contabilidade (ponto de equilíbrio, depreciação, investimento, rateio, pró-labore, etc.). Não dá para calcular o valor de um frete somente analisando o valor do combustível, que é um custo variável. Há uma enormidade de custos e despesas fixas que estão sendo deixadas de lado.
Se há uma associação que os representa, que ela seja ativa e pense em estratégias, ações e iniciativas para – realmente – melhorar a condição de vida de seus representados. Exigir do Governo uma porcentagem dos fretes da CONAB para os motoristas autônomos não melhorará em nada. Exigir um tabelamento do valor do frete, também não. Cada um destes motoristas autônomos é diferente do outro, cada caminhão é diferente do outro; a necessidade de um não é a necessidade do outro. Imaginem, caros leitores, quando se fala de 2 MILHÕES de caminhoneiros espalhados pelo Brasil? É urgente uma solução mais dinâmica e fácil de usar, quem sabe, um aplicativo que calcule, no momento da negociação, o preço do frete a ser cobrado, que seja igual ou semelhante ao do outro, e do outro, e do outro… O que muda de um para o outro? O custo fixo, entre eles o parcelamento do caminhão, do reboque, o pró-labore, o seguro, e outros, muitos outros como mencionado anteriormente. Destes, um dos poucos que pode ser mudado durante a negociação, é o pró-labore, porém reduzir o valor do trabalho do profissional é dizer que não reconhece o esforço e dedicação que serão empregados na realização da tarefa. Esta é a segunda sugestão.
E a terceira, como mencionei acima, parar de jogar na mão do Governo as coisas que nós temos que fazer. Temos que ser autônomos e responsáveis pelas escolhas que fizemos. Assumi-las e não prejudicar ninguém por conta delas.
Se você tiver alguma sugestão, opinião ou dúvida, você pode entrar em contato pelo formulário de contato, pelo WhatsApp ou enviar um e-mail diretamente para site@marciokarsten.pro.br.
Parabéns, Márcio, pela competentes análise e sugestões ao problema dos caminhoneiros. De fato, a percepção da atividade de transporte como um negócio parece-me central. É uma convicção que firmei desde que visitei a FABET, Fundação Adolpho Bósio de Educação no Transporte, em Concórdia, que define o caminhão como uma unidade de negócios e preparava os caminhoneiros qualificando-os com competências técnicas e relacionais para o exercício da profissão. Criaram o Caminhão Escola com o objetivo de preparar motoristas de caminhões pesados e semipesados, com a finalidade de enfrentarem com maior qualificação as evoluções tecnológicas do segmento do transporte rodoviário de cargas. A pena é que em nosso país isto é uma exceção!!