O discurso de Boaventura Sousa Santos, exposto em seu texto “Um discurso sobre as Ciências na transição para uma ciência pós-moderna”, argumenta de forma sólida – e praticamente incontestável – que a ciência passa por um momento reflexivo, em que a Ciência está mudando a própria Ciência, em um processo evolutivo. Não seria correto dizer que, neste processo, está deixando de lado os preceitos da ciência moderna, mas adaptando-os aos novos tempos, às novas realidades, principalmente à multiplicidade da ciência e à globalização. Outro fator que colabora fortemente para esta transformação da ciência é a excessiva especialização acerca de determinado tópico e em sua explicação de “como” funcionar, sem procurar entender o “fim das coisas”.
A invasão no espaço da ciência determinista (dura, fria e calculista) de Descartes de fatores humanos, sociais e psicológicos é, também, determinante para as mudanças ocorridas nas visões dos cientistas, trouxe características muito mais qualitativas do que quantitativas aos estudos, “com vistas à obtenção de um conhecimento intersubjetivo, descritivo e compreensivo”, gerando proposições que não se pode “demonstrar nem refutar”.
Além destes fatores, outra questão levantada por Boaventura é a industrialização da ciência, que a afastou do cidadão comum, através de sua centralização e direcionamento para as causas interessantes aos patrocinadores dos estudos e não àqueles, incrementando o abismo científico entre os países que patrocinam a ciência e os que são periféricos.
Esta conjuntura traz à tona o paradigma emergente, que deveria servir de base para os novos cientistas e seus estudos, fundamentado em três teses: (a) que todo conhecimento científico-natural é científico-social; (b) que todo conhecimento local é total; (c) que todo conhecimento é autoconhecimento; e (d) que todo conhecimento visa constituir-se num novo senso comum.
A primeira tese estabelece que deve-se superar a dicotomia entre ciências naturais e sociais, valorizando os estudos humanísticos, sendo preferível entender o mundo ao invés de alterá-lo. A segunda, por sua vez, postula uma visão diferente da fragmentação (especialização) do objeto de estudo: ao invés de disciplinar, que seja temática.
A terceira tese em que se baseia a proposta de Boaventura preconiza que a ciência deste paradigma emergente deva ser “mais contemplativa do que ativa”, sendo que estas criações científicas se pareiam à “criação literária ou artística”.
Por fim, a quarta tese que suporta este paradigma emergente versa sobre a necessidade da transformação do conhecimento científico em senso comum, em que o autor defende que o conhecimento deve tornar-se popular e não ficar concentrado nas mãos (e mentes) de alguns poucos privilegiados.
Este texto de Boaventura traz à luz uma nova forma de se pensar a Ciência, que procura não mais se contentar com o “como” as coisas funcionam – pensamento que mudou os paradigmas na ciência moderna –, mas sim o “para quê”, “com que finalidade”, que levanta uma série de alterações nos paradigmas existentes.
Nunes, por sua vez, ratifica a intenção de Boaventura e realiza uma recontextualização dos fundamentos do Paradigma Emergente 16 anos depois. Fundamenta seu texto nas teses expostas por Boaventura e confronta essas ideias às “guerras da ciência” ou “guerras da cultura”, deflagradas, especialmente na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, respectivamente. Segundo o autor, as comparações realizadas pelos cientistas que deflagraram tais movimentos foram deslocadas temporalmente e, por conseguinte, estavam fora do contexto.
Isso porque a ciência deriva da ciência e os escritos de Boaventura, apesar de críticos ao modelo da ciência moderna, faz relação à aproximação entre as ciências natural e social, inclusive com a adoção de termos de uma à outra, o que pode ter desencadeado a “ira” dos puristas.
Este derivar da ciência dentro da própria ciência é uma das características – senão a principal – da ciência. O caráter evolutivo, de que o conhecimento nunca está pronto, somente adaptado à um certo cenário em um determinado ponto de vista é o que motiva (ou pelo menos deveria motivar) pesquisadores e cientistas a buscar os novos conhecimentos, romper novas barreiras.
Pelo que o texto de Nunes deixa transparecer, é que as mudanças propostas por Boaventura não foram bem recebidas no cenário internacional, mas que fazem grande sentido, uma vez que a ciência e o próprio mundo estão em “estado de turbulência” (ou transição, como citou Boaventura).
É possível enxergar todos esses movimentos na sociedade. Uma sociedade que está – cada vez mais – em busca de um sentido para as coisas, uma motivação para agir. A ciência “atomizada”, pregada pela ciência moderna, a distancia da sociedade, quando na verdade, deveria ser parte dela.
No estudo das ciências sociais aplicadas, mais especificamente na administração, por que os CEOs das empresas não leem os artigos e materiais científicos disponíveis? Por que não participam dos congressos e seminários científicos? Por que a ciência social aplicada não consegue “tocar” os administradores a ponto de fazê-los mudar seu olhar? O texto de Boaventura responde a alguns destes questionamentos – excesso de especialização, afastamento da comunidade, foco do questionamento, resultados “duros” demais e, em certo ponto, “tendenciosos” demais.
A humanização da ciência, proposta do Boaventura é uma boa trilha a seguir ao se pensar em evolução na ciência, afinal, um dos fatores que alavancou a ciência moderna foi a convergência dos conhecimentos, a união da matemática árabe, da astrologia chinesa, da filosofia grega e outros conhecimentos então disponíveis. É hora de a ciência se popularizar.
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Referências
SOUSA SANTOS, B. Um discurso sobre as ciências. Coimbra: Edições Afrontamento, 1988.
NUNES, J. A. Um discurso sobre as ciências 16 anos depois. In: Sousa Santos, B. Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortez, 2004.
Resenha confeccionada durante o programa de mestrado da UDESC/ESAG
Disciplina: Administração e Ciência
Professora: Dra. Maria Carolina Martinez Andion